sábado, 30 de agosto de 2008

O que faz de alguém poeta?

Assistindo a uma aula meio sem futuro na faculdade, pensava em algo para postar aqui e resolvi folhear o livro que tinha mandado emplastificar para dar de presente à minha ex-aluna, Sarah. O livro era Para viver um grande amor (crônicas e poemas), e Vinicius me deu um texto sobre o que queria colocar no blog, com uma qualidade infinitamente superior a qualquer coisa que eu viesse a escrever. Pouco antes da aula começar tive uma discussão com meu amigo, Márcio, sobre o que é ser poeta, sobre o que a poesia representa para o poeta, para o leitor, para a sociedade. Poeta é quem escreve, mas nunca publicou nada? Poeta é quem tem livro publicado, independente de o livro ser bom ou não? E quem julga se o livro é bom, se o trabalho de determinado poeta tem qualidade? Os críticos? Os leitores em geral? Ele mesmo?

Eu já fui metido a poeta quando adolescente. Meu amigo ainda é.
Após o modernismo, que trouxe a supremacia do verso livre, todo mundo passou a achar que era fácil ser poeta: basta desabafar suas dores no papel, sair quebrando o texto em “versos” e pronto. Sem conhecer nada de versificação, nada de musicalidade, nada de técnica literária, muitas vezes com um vocabulário bem limitado. E hoje, com a internet, com a facilidade que tem de se ser lido por um grande número de pessoas ao publicar textos em blogs e afins, pululam “poetas”, “contistas”, “cronistas”, “artistas” em geral. Não estou exatamente questionando a qualidade - algumas coisas boas se encontram por aí! – estou questionando o posicionamento diante da arte, o amadorismo, a ausência de compromisso até consigo mesmo diante do “querer ser artista”, a ausência de auto-crítica. Escreve-se qualquer coisa, publica-se num blog, ou num zine, e diz-se: “sou poeta”.
Sim, “poeta”, você tem um dom? Os grandes da Literatura, da Pintura, da Escultura, por mais agraciados que fossem no quesito “dom”, estudavam, pesquisavam, procuravam mestres que os orientassem, dominavam as técnicas do seu fazer artístico. E você, o que faz?

Bem, a briga com o Márcio foi animada. Teremos muitas outras, ainda, se ele não se esquivar. Nos próximos posts colocarei textos de artistas consagrados falando sobre o assunto. Hoje, deixo o poetinha falar.

Steller de Paula

Sobre poesia



Não têm sido poucas as tentativas de definir o que é poesia. Desde Platão e Aristóteles até os semânticos e concretistas modernos, insistem filósofos, críticos e mesmo os próprios poetas em dar uma definição da arte de se exprimir em versos, velha como a humanidade. Eu mesmo, em artigos e críticas que já vão longe, não me pude furtar à vaidade de fazer os meus mots de finesse em causa própria - coisa que hoje me parece senão irresponsável, pelo menos bastante literária.

Um operário parte de um monte de tijolos sem significação especial senão serem tijolos para - sob a orientação de um construtor que por sua vez segue os cálculos de um engenheiro obediente ao projeto de um arquiteto - levantar uma casa. Um monte de tijolos é um monte de tijolos. Não existe nele beleza específica. Mas uma casa pode ser bela, se o projeto de um bom arquiteto tiver a estruturá-lo os cálculos de um bom engenheiro e a vigilância de um bom construtor no sentido do bom acabamento, por um bom operário, do trabalho em execução.

Troquem-se tijolos por palavras, ponha-se o poeta, subjetivamente, na quádrupla função de arquiteto, engenheiro, construtor e operário, e aí tendes o que é poesia. A comparação pode parecer orgulhosa, do ponto de vista do poeta, mas, muito pelo contrário, ela me parece colocar a poesia em sua real posição diante das outras artes: a de verdadeira humildade. O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu instrumento é a palavra. Sua função é a de ser expressão verbal rítmica ao mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo o que existe ou é passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo da maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não será nunca um bom poeta, mas um mero lucubrador de versos.

O material do poeta é a vida, dissemos. Por isso me parece que a poesia é a mais humilde das artes. E, como tal, a mais heróica, pois essa circunstância determina que o poeta constitua a lenha preferida para a lareira do alheio, embora o que se mostre de saída às visitas seja o quadro em cima dela, ou a escultura no saguão, ou o último long-playing em alta- fidelidade, ou a própria casa se ela for obra de um arquiteto de nome. E eu vos direi o porquê dessa atitude, de vez que não há nisso nenhum mistério, nem qualquer demérito para a poesia. É que a vida é para todos um fato cotidiano. Ela o é pela dinâmica mesma de suas contradições, pelo equilíbrio mesmo de seus pólos contrários.
O homem não poderia viver sob o sentimento permanente dessas contradições e desses contrários, que procura constantemente esquecer para poder mover a máquina do mundo, da qual é o único criador e obreiro, e para não perder a sua razão de ser dentro de uma natureza em que constitui ao mesmo tempo a nota mais bela e mais desarmônica. Ou melhor: para não perder a razão tout court.Mas para o poeta a vida é eterna. Ele vive no vórtice dessas contradições, no eixo desses contrários. Não viva ele assim, e transformar-se á certamente, dentro de um mundo em carne viva, num jardinista, num floricultor de espécimes que, por mais belos sejam, pertencem antes a estufas que ao homem que vive nas ruas e nas casas. Isto é: pelo menos para mim.
E não é outra a razão pela qual a poesia tem dado à história, dentro do quadro das artes, o maior, de longe o maior número de santos e de mártires. Pois, individualmente, o poeta é, ai dele, um ser em constante busca de absoluto e, socialmente, um permanente revoltado. Daí não haver por que estranhar o fato de ser a poesia, para efeitos domésticos, a filha pobre na família das artes, e um elemento de perturbação da ordem dentro da sociedade tal como está constituída.Diz-se que o poeta é um criador, ou melhor, um estruturador de línguas e, sendo assim, de civilizações.

Homero, Virgílio, Dante, Chaucer, Shakespeare, Camões, os poetas anônimos do Cantar de Mío Cid vivem à base dessas afirmações. Pode ser. Mas para o burguês comum a poesia não é coisa que se possa trocar usualmente por dinheiro, pendurar na parede como um quadro, colocar num jardim como uma escultura, pôr num toca-discos como uma sinfonia, transportar para a tela como um conto, uma novela ou um romance, nem encenar, como um roteiro cinematográfico, um balé ou uma peça de teatro. Modigliani - que se fosse vivo seria multimilionário como Picasso - podia, na época em que morria de fome, trocar uma tela por um prato de comida: muitos artistas plásticos o fizeram antes e depois dele. Mas eu acho difícil que um poeta possa jamais conseguir o seu filé em troca de um soneto ou uma balada. Por isso me parece que a maior beleza dessa arte modesta e heróica seja a sua aparente inutilidade. Isso dá ao verdadeiro poeta forças para jamais se comprometer com os donos da vida. Seu único patrão é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e tranqüilidade.

Vinicius de Moraes

Um comentário:

Marcio Araujo disse...

O conceito de arte colocado em crise é algo bastante comum em nossa contemporaneidade. Antes do Modernismo o poder da crítica era enorme, isso fez do artista refém de sua análise. (Até hoje estou chateado com a Anita Malfatti por levar tão a sério o que Monteiro Lobato escreveu sobre ela.) O fato é que o próprio desapego da técnica vem sendo aos poucos esquecida. Muitas vezes isso faz parte da proposta da época ou do artista. Lembremos o que Marcel Duchamp fez com sua técnica ready-made, colocando um objeto “não artístico” em um ambiente do museu. Para muitos colocar um vaso sanitário em uma sala não seria arte, mas para outros isso significou a alegórica situação da crise de nossa civilização e de quebra da sacralidade do objeto artístico - tão cultuado pelos críticos de então.O fato é que a sensibilidade deve ser associada a crítica ou então seremos mais tecnicistas e vamos começar a esquecer do que será apreciar o “objeto” artístico.